Rodrigo Guéron
Passado mais de um mês das manifestações de 07 de setembro promovidas pelo bolsonarismo, a minha avaliação é que elas foram razoavelmente positivas para Bolsonaro. Enquanto todos polemizavam se ia haver golpe ou não, um temor que tinha, talvez, alguma pertinência, Bolsonaro soube usar as grandes mobilizações muito bem para ganhar força no âmbito do institucionalidade. O STF freou o confronto com ele, o congresso (particularmente a câmara dos deputados) se manteve fiel ao governo (inclusive com deputados dissidentes se reaproximando da base) e setores do grande capital voltaram a deixar claro que, principalmente diante de Lula e das razoáveis perspectivas de avanço do programa neoliberal selvagem já em marcha, mantém o apoio a Bolsonaro. O sentimento de oposição, é verdade, segue forte, às vezes até como sentimento de revolta. As pessoas criticam Bolsonaro nas ruas sem cerimônia, ainda que quase sempre exista um bolsonarista por perto para fazer a sua militância delirante em defesa de seu “líder”. Mas este sentimento antibolsonaro está apenas parcialmente presente nos atos pelo impeachment, não por causa de uma suposta falta de ampliação de partidos e organizações "mais ao centro", mas por uma dificuldade de mobilização, por uma falta de estratégia e iniciativa para trazer às manifestações, ou mesmo para organizar manifestações de outra forma, entre aqueles que não têm dinheiro e condições de se deslocar, porque mal têm para comer; quando têm. Para milhões de brasileiros, hoje, tentar não morrer de fome é a única política que eles imaginam fazer.
Revendo o modo como jornalistas supostamente mais à esquerda, intelectuais e as pessoas em geral analisaram aquelas manifestações, eu tenho a impressão que vivemos uma crônica dificuldade de pensar para além do regime de afetos do espetáculo, da velocidade e da “atualidade” cega do jornalismo, além de uma preocupante tendência da esquerda para produzir uma espécie de autoengano nas suas avaliações políticas. É notável também uma postura de superioridade intelectual a qual corresponde muito pouco esforço de pensamento e leitura, ou seja, arrogância e superioridade de classe no lugar de esforço e risco intelectual e político. Não adianta exaltar frequentemente Paulo Freire nas redes sociais e reproduzir uma relação de poder com o conhecimento cuja denúncia, a crítica e a proposta de uma alternativa era um dos centros do trabalho no mestre. Mas aqui talvez eu mesmo sofra do mal de falar para a minha própria bolha, uma vez que andando entre os diversos grupos que vão às manifestações, percebo satisfeito que existe uma esquerda e uma mobilização social que se organiza para além desses limites, tanto quanto vejo lutas e mobilizações espalhadas por aí. É curioso que observei isso exatamente nas manifestações que a oposição organizou no próprio 07 de setembro, que aconteceram de maneira razoavelmente boa, enquanto a esquerda “bom-mocista”, em geral composta por este meio pequeno-burguês intelectualizado (o meu, portanto...), usava seus argumentos supostamente racionais para amedrontar, tentando convencer as pessoas a não sair de casa.
A estratégia de tensão limite, na qual o bolsonarismo frequentemente aposta, faz com que, de fato, tudo sempre possa acontecer, inclusive uma, pelo menos hoje, improvável derrocada do governo. Mas, por enquanto, vejo Bolsonaro ainda bastante forte para as eleições do ano que vem, ainda que a oposição esteja muito mais forte do que dois anos atrás, quer dizer, não estou aqui deixando de reconhecer que houve conquistas e ações fortes e bem pensadas na nossa resistência. Vejo, no entanto, uma esquerda razoavelmente medrosa e com um medo dos riscos das mobilizações, temor que os bolsonaristas têm pouco. Medo este que se reflete na forma patética como os membros dos aparelhos de esquerda tentam, aos berros, controlar as manifestações do alto dos carros de som. Na última manifestação, de volta à apertada Avenida Rio Branco – numa decisão estratégica no mínimo equivocada –, depois de um formato renovado de manifestações saídas do Monumento de Zumbi, vimos uma multidão que mal conseguia cantar as suas palavras de ordem, abafada pela falação histérica e estéril, em altos decibéis, que quase ninguém escutava ou estava interessado em escutar. E não adianta colocar a culpa (só) no PT. O PT é de longe o partido mais popular e por isso mais presente nas mobilizações de oposição. Ativistas e grupos de esquerda e anti-bolsonaro não petistas precisam lidar com isso de uma forma menos virulenta e mais estratégica; se bem que reflexão semelhante sirva também para certos grupos do PT em relação a estes grupos (e aqui não me refiro aos ataques do Ciro Gomes, algo muito grave que deixarei para comentar em outra ocasião). O fato é que sem a força do PT Bolsonaro não cai, mas só com o PT e os grupos de esquerda também não. Por isso creio que o esforço da mobilização “fora Bolsonaro” deva ser, de uma forma geral, para além dos limites de qualquer organização partidária e das entidades excessivamente hierarquizadas, institucionalizadas e/ou burocratizadas. Mas que fique bem entendido que isso não tem nada a ver com o grito “sem partido”; ao contrário, esse tipo de mobilização é importante inclusive para os partidos se renovarem e saírem do imobilismo burocrático. Falo aqui de um problema micropolítico que atravessa quase todas as organizações de esquerda, qual seja, este de tentar manter os atos políticos completamente dentro das “diretrizes pré-estabelecidas”. Não se trata aqui de ser “sommelier de manifestação”, mas de compreender como os hoje necessários movimentos de rua podem se fortalecer. No espaço amplo da Presidente Vargas os grupos se espalharam, expuseram as singularidades de suas lutas, fizeram suas performances e todos tinham um papel muito mais ativo na manifestação. O impacto das manifestações de maio e junho, onde 100% das pessoas usavam máscaras, foi importante. É curioso, porque as fotos de “unidade”, os gritos de “Fora Bolsonaro” no final saíram muito mais fortes. Sei que muitos vão achar essa minha reflexão secundária, mas sinceramente não creio que seja... E não se trata apenas de fazer as manifestações voltarem a se concentrarem na Presidente Vargas, o que é uma questão restrita ao Rio de Janeiro: é algo muito além disso. Me parece óbvio que o bolsonarismo tem sido politicamente mais eficiente exatamente porque também tem sido esteticamente mais eficiente. A esquerda e suas boas intenções continua presa a um moralismo típico da Escola de Frankfurt que opõem política à estética e condena a “estetização da política”. Ou a gente compreende que a batalha política é sempre, de certo modo, uma batalha estética, ou a gente não vai saber fazer uma luta forte e eficaz. Há uma evidente energia de revolta contra Bolsonaro para além dos limites das organizações tradicionais e, paradoxalmente, boa parte da esquerda organizada a teme, e esse temor micropolítico vai dos grande partidos até os pequenos grupos.
Voltemos, então, ao regime de afetos do jornalismo (ou talvez da "comunicação"), que é também um regime de tempo e de ritmo... Tem me chamado a atenção a realização e a publicação frequente de pesquisas eleitorais, como se as eleições presidenciais fossem se realizar nos próximos dias. Vejo a maioria da oposição completamente pautada por estas pesquisas e comemorando cada uma que coloca Lula na frente. Não acho que estes levantamentos mintam, pois acredito que nesse momento o resultado seja esse mesmo. Mas o que vamos fazer se Bolsonaro voltar a crescer nas pesquisas? Esta frequência inusitada das pesquisas me parece uma estratégia clara de controle do processo político, tendo sido decisiva para o realinhamento do poder econômico com Bolsonaro. Mas, sobretudo, elas produzem uma relativa paralisação da oposição, que fica enquadrada nessa espécie de “regime de tempo”, neste clichê de ritmo.
A mobilização de multidões pelo bolsonarismo dia 07 de setembro não foi pouca coisa, e não adiante ficar repetindo que eles são apenas "20% de fanáticos", e nem colocar toda a responsabilidade no investimento de dinheiro e máquina que, de fato, houve para as manifestações. Na minha vizinhança, pequena burguesia branca carioca, eu vi dezenas de grupos saírem de casa cedo porque resolveram se organizar para ir. O fluxo de carros, motos, pessoas apertadas em taxis e uber, saindo do túnel Santa Bárbara em direção à Copacabana era impressionante. O bolsonaristas estão absolutamente prontos para saírem às ruas em massa e para fazerem uma mobilização de convencimento da população: nas proximidades da eleição eles serão uma multidão incansável de militantes. E, insisto, não adianta o autoengano de repetirmos para nós mesmos que são apenas robôs. A eleição de 2018 não foi no século passado. A população não ficou "racional" de repente como a esquerda intelectualizada gostaria de crer. Aliás, esta crença numa concepção superficial, iluminista e colonizada de “racionalidade” talvez seja a embriagues, o delírio, de grande parte da nossa intelectualidade. Aliás, como no erro que diagnostiquei as vésperas das eleições de 2018, num texto que virou o primeiro capítulo do meu livro sobre o bolsonarismo (https://naueditora.com.br/ebook_gratuito/a-vinganca-dos-capatazes-2/), a tendência em acreditar que Bolsonaro vai perder porque tendemos a um progresso da "racionalidade" e da "civilização" é um equívoco que insiste.
Um dos motivos pelo qual creio que o Bolsonaro segue forte é exatamente essa excitante convocação para a guerra a qual ele frequentemente recorre, essa operação catastrofista e apocalíptica, que captura um sentimento, às vezes legítimo, às vezes não, de que a vida sofre uma grande derrocada graças a violência de certos poderes econômicos. A mobilização de uma energia libidinal de revolta é decisiva para o fascismo, e nesse sentido o bolsonarismo é capaz de tentar mobilizar para si até mesmo a revolta da população contra a alta dos preços. É curioso ver como o fascismo pode incluir até um elemento de revolta de classe que curiosamente faz a violência do poder ser evocada e voltar muito mais forte, como se a multidão recorresse misticamente à força dos que a oprimem para salvá-la do grande inimigo delirado a partir de um sentimento de opressão e de uma vida miserável que existem de fato. É ingênuo achar que Bolsonaro vai ser derrotado apenas se conseguirmos transmitir para a população a “boa” e “verdadeira” informação. Não estamos simplesmente diante de uma guerra de informações e muito menos de uma luta da verdade contra a mentira. Não são estes os termos principais: estamos diante de uma batalha política que é estético-afetiva.
Eu sempre acreditei que o bolsonarismo viu na pandemia uma oportunidade de se fortalecer. É claro que esta é uma aposta limite que pode se voltar contra ele e resultar simplesmente no contrário: a derrocada. Mas os bolsonaristas apostam em uma segundo semestre de 2022 com uma importante recuperação do emprego, com a economia circulando forte (e exatamente por isso a inflação é um grande perigo para eles) e um programa social reestruturado para deixar claro que tudo de ruim que aconteceu e ainda acontece no país foi por causa da grande conspiração comunista que espalhou a pandemia pelo mundo e seus aliados no Brasil: a velha tese do “inimigo interno” que mobilizou as forças armadas para o golpe de 1964, agora como uma paranoia social disseminada e um tanto quanto fortalecida pelo afeto apocalíptico dos neopentecostais. É aqui que a própria revolta contra a crise econômica vai tentar ser, em parte, capturada pelos bolsonaristas, ainda que hoje eles não estejam sendo muito bem sucedidos nesta tentativa.
Bolsonaro vai se apresentar mais uma vez como herói da pátria que teria feito de tudo para defender a economia, e os 600 mil mortos serão os heróis dessa guerra. Se ele conseguir mobilizar a sua multidão de 20% da população para este excitante delírio paranoico, não serão manifestações de oposição a cada 45 dias e a preguiçosa e arrogante superioridade intelectual de boa parte da militância de esquerda que vai derrotá-lo. Creio, por outro lado, que temos toda a condição de vencê-lo, mas temos que saber sair destas armadilhas estético-políticas que nos enredam.
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