Engraçado, nunca fui um “tarantinista”. Não vibrei como alguns amigos nos anos 1990 com Pulp Fiction (1994); gostei do filme, de algumas cenas e imagens em especial, e pronto. Na verdade eu gostei (gosto) mesmo de um filme que os cultuadores do diretor consideravam menos importante: Jackie Brown (1997). Mas já em Kill Bill (2003), que achei muito interessante, comecei a discordar do que grande parte da crítica dizia do filme, a saber, que este, e outros filmes de Tarantino que o seguiram, eram uma colagem de referências, montagem de citações cinematográficas, quadrinhos, clichês pops: uma espécie de costura de pastiches. Isso não era – não é -- exatamente uma inverdade, mas limita profundamente a experiência da obra do diretor estadunidense.
Coisas semelhantes têm sido ditas sobre Django Livre, e continuo achando que esta espécie de senso comum da crítica sobre o cinema de Quentin Tarantino não dá conta da força do diretor.
De início, eu diria que o que Tarantino faz em Django Livre é lidar e enfrentar o passado dos EUA, ou seja, as imagens do passado dos EUA (ou melhor, o passado enquanto imagem), não fazendo diferença, como na espetacular edição da primeira parte da História(s) do Cinema de Jean Luc Godard (que a propósito detesta Tarantino) se são imagens documentais ou de filmes de ficção: trata-se de memória e o que a constitui; sobretudo memória como um presente a ser enfrentado. A princípio, pensaríamos nós, as primeiras imagens a serem enfrentadas seriam as da escravidão e dos negros. E de fato elas estão lá, mas neste campo há também um vazio, uma falta de imagens, uma omissão gritante e, em especial, uma contra-imagem. No cinema americano, e na história, a escravidão aparece pelo racismo, pela assepsia branca-anglo-saxã de Hollywood, pela ausência, falta de protagonismo ou pelo estereótipo dos negros nos filmes e, finalmente, pelo que estes construíram como imagens de resistência, como exuberância e empoderamento, e até como estereótipos de si mesmos. Mas o passado remexido em Django Livre vai bem além destas imagens: são as grandes imagens épicas da “América” que estão ali. E assim faz todo sentido misturar western e escravidão: a mistura que quase nunca houve é, no fundo, a mistura que sempre esteve latente, como se saturação e omissão se encontrassem numa esquina da história, e do cinema.
Mas, é claro, é tão impossível fazer hoje um western, é tão impossível crer de novo naquelas velhas fábulas épicas (e o belíssimo Onde os Fracos Não Tem Vez dos irmãos Coem mostra isso, quase me desmentindo), quanto é impossível não considerar a grandeza épica, a força das imagens destas fábulas civilizatórias que misturaram uma beleza cinematográfica gigantesca (beleza da vida e do mundo portanto, e não do umbigo do cinema) com a violência sanguinária de todos os conflitos e genocídios da "marcha para o Oeste". É no meio do impasse criado por esta herança, como se abrisse um espaço a cotoveladas para poder criar as suas imagens, que Tarantino inventa Django, um impossível cowboy negro, ex-escravo, justiceiro, caçador de recompensas, lutando contra seus algozes senhores para libertar a sua amada.
Mas é tão impossível crer num cowboy como antes, que um cowboy negro politicamente correto, didático militante da moral liberal estadunidense, seria ridículo e absurdo. Por outro lado, se Tarantino fizesse do seu filme uma simples paródia, ou apenas uma comédia, (como o grande Spike Lee equivocadamente entendeu), teria banido de modo cínico e impotente a violência. Afinal de contas, cinema e violência, guerra e cinema, são tão imbricados quanto o são história e violência; seja a violência banalizada das imagens e a violência do banal em imagens; seja a violência bela e estética, às vezes ascética e fria, às vezes redentora (por uma “grande causa”) e, finalmente, uma violência fascinante, atraente: a violência como promessa de um grande gozo e prazer.
Mas isso ainda é pouco, as situações dos westerns são impossíveis, são ridículas, mas ao mesmo tempo são o passado que houve, pouco importa se no cinema ou de fato. Nos velhos filmes de mocinho e bandido algumas imagens fascinam ainda hoje: homens destemidos, sagas, paisagens sublimes. O cowboy é ao mesmo tempo uma criança ingênua, sensual e sanguinária. Herói nômade, ele vem antes da besta branca civilizatória ocidental, faz o serviço sujo para ela antes de ser, ele também, violentamente civilizado: o cowboy errante e justiceiro antes da "América" se tornar EUA. E nos Estados Unidos o próprio cinema é, como num western, marcha para o oeste.
Tarantino cria este cowboy negro nada crível, justiceiro destemido e apaixonado, enquanto enfrenta a sempre trágica lida com o passado. Num emaranhado de cinema e história, história e cinema, ele duplica infinitamente as imagens, mostrando-as em todos os seus lados. Às vezes num só movimento, às vezes em idas e vindas frenéticas, ele destrói o passado tão bem quanto o resgata. Dá até a impressão que um de seus manuais de filmagem foi o mais belo e anti-fascista dos textos de Nietzsche ( filósofo que foi, paradoxalmente ou não, herói dos nazis): "Das Utilidades e dos Incovenientes da História para a Vida".
Na encruzilhada entre memória e esquecimento, entre o que não podemos reviver e o que nos é impossível (e indigno) esquecer; entre o que não conseguimos mais crer e o que temos o desejo de afirmar; entre o cinismo e a ingenuidade; entre a violência crua e real e o efeito cenotécnico; entre a pretensão de realismo misturada às lições de moral e o ridículo das situações inverossímeis, Tarantino escolhe tudo isso ao mesmo tempo.
Debochamos, rimos e descremos juntos e, surpreendentemente, somos arrebatados na cadeira do cinema como adolescentes do meio do século passado torcendo por seus mocinhos. E assim nos pegamos se assustando e delirando como bestas diante de um grande massacre: o massacre "justo", a vingança perfeita: a cópia, da cópia, da cópia, mas totalmente anti baudrillardiana, posto que nada niilista: potente. E o cinema todo vibra como quando a mocinha judia, de Bastardos em Glória, em plena Paris ocupada, explodiu a sala de cinema com Hitler, Goebbels, Goering e todo o Terceiro Reich dentro.
É o absurdo que é bom: a delícia do cinema desmascarado no tosco de seus recursos dramáticos e cenotécnicos moribundos, misturado à delícia de ver como a história absurdamente deveria ter sido para a felicidade geral todos. De fato, se o cinema é uma falácia, a ciência e suas “verdades” podem sê-lo do mesmo jeito: certas situações do filme são tão estúpidas quanto a explicação “científica” que o senhor de escravo dá sobre o cérebro dos negros. Mas o poder também se mantém porque é fascinante e engendra prazeres. O cinema e suas delícias, tantas vezes perversas, têm muito a ver com isso. Por isso a cena das das mulheres escravizadas arrumando a mesa de jantar do senhor na Casa Grande pode ser, para alguns, uma das mais belas do filme.
Hollywood sempre nos quis dar a onipotente sensação da destruição do mau; para isso precisou nos afogar na polarização bem x mau para depois despejar todo o nosso desejo – e sobretudo o anti-desejo: o medo, a culpa – nela. Só que Hollywood não está acima de nossas cabeças: ele é parte do poder que nos atravessa, seja como violência ativa, seja como a impotência do medo e da culpa: imagens impotentes. O “politicamente correto” tem a ver com estas últimas, e ainda é capaz de gerar como seus espectros uma legião de almofadinhas proto-fascistas, figuras do establishment pousando de irreverentes “politicamente incorretos”.
Por outro lado, se o cinema americano não se cansa de matar por uma grande causa, e de nos prometer o assassinato como um grande gozo – e nós como heróis assassinos –, Tarantino em Django nos permite brincar deliciosamente de sermos justos, mandando à merda, para o nosso deleite, todo o politicamente correto. Agora já podemos rir, comemorar e se lambuzar de sangue à vontade com o triunfo do bem que sempre desejamos: o melhor final feliz de todos os tempos.
A cinematográfica onipotência estadunidense da destruição do mal é triunfalmente destruída e ressuscitada por Tarantino, que no mesmo movimento de pistola mata a culpa liberal-cristã com uma bala na testa. Bom já não é matar “bandidos”, “índios”, “comunistas”, “terroristas islâmicos”, ou todo e qualquer suposto inimigo da “América”. Nem muito menos sentir compaixão por eles. Bom mesmo é matar fascistas! Bom mesmo é trucidar senhores de escravos e racistas! É delicioso poder mandar esses porcos todos pelos ares! Sem pena alguma.
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