Resumo: Este artigo pesquisa o que fez Gilles Deleuze e Felix Guattari lançarem mão do “conceito” de ready-made – na verdade, mais do que um conceito —, criado pelo artista dadaísta “Marcel Duchamp”. Veremos o contexto em que o próprio Duchamp é levado a se apropriar de um objeto, assiná-lo com um pseudônimo e redefini-lo para apresentar em uma exposição de arte, ou seja, dando a este objeto, de certo modo, o estatuto de um “objeto artístico”. Veremos o ready-made como um ato, uma ação, uma espécie de “virada” que redefine e reinstitui sentidos, numa descrição que será útil aos dois filósofos supracitados para nomear um ato que seria o próprio gesto artístico, qual seja, o de transformar uma matéria em “matéria de expressão”. Um ato que está antes de qualquer “humanidade”: “virada” decisiva que, segundo Deleuze e Guattari, faria emergir qualidades e expressividades de corpos e matérias, formando assim “blocos de sensações”. Estes últimos, além de serem uma das formas dos autores definirem “arte”, definem também uma espécie de ethos, de território que se agencia: o “ritornelo”. Duchamp e seu ready-made tornam-se assim aliados de Deleuze e Guattari para que eles descrevam um ponto chave do pensamento que criam juntos: a arte como um ato de força, um ato criador em uma imanência autopoiética: um mundo que se arranca do “Caosmos”.
"Todas as ações de Duchamp, seja como pintor, seja as que aconteceram com o grupo dadaísta, seja as de depois da “dissolução” deste – e mesmo antes nas suas errantes e transitórias participações no movimento surrealista—, se dirigem contra as amarras estéticas e as consequentes restrições às experiências sensíveis que as delimitações do que deveria ser arte e de quem deveria ser o artista construíram. É neste contexto que faz todo o sentido a afirmação aparentemente cética de Duchamp de que ele não teria nenhuma “crença”, que não acreditava em nada: “A palavra crença é um erro também. É como a palavra julgamento. São dados terríveis sobre os quais o mundo está assentado”. De novo lembrar-se de Nietzsche parece inevitável. Duchamp parece partilhar aqui uma crítica à moral próxima a do filósofo: rejeitar uma crença é rejeitar à moral. Lembremo-nos que, para Nietzsche, a moral se instala e atua através uma operação eminentemente estética, isto é, uma operação sobre o corpo. A moral é um poder sobre o corpo, algo que se inscreve sobre ele, codificando-o, condicionando suas formas, posturas e movimentos, introjetando dor e culpa (a memória da dor, do castigo...) podando-o, tornando-o “menos”, separando-o do que ele pode. Assim, se esta operação de atribuir valor – esta operação moral--, típica das designações sobre o que deveria ser a arte e o artista, acontece como uma ação sobre o corpo, uma espécie de parcial encarceramento deste, só mesmo uma operação estética de outro tipo, de certa forma inversa à primeira, poderia nos livrar deste poder. Por isso nos parece que a rejeição à arte e à figura do artista feita por Duchamp é uma maneira de afirmar a arte como uma potência que só poderia existir por fora do campo ao qual o modernismo a havia restringido: os campos delimitados pela autonomia da obra de arte e pelo gênio artístico."
Comments